Costumo brincar com os educadores com que trabalho: se vocês precisarem de uma pessoa que defenda incondicionalmente a aprovação de um aluno, podem me chamar. E, se estiverem na dúvida se aprovam ou não um aluno, podem estar certos que, mesmo antes de ouvir as possíveis razões para reter o aluno, vou defender a sua aprovação. E terei ótimos argumentos para refutar essas razões.

Muito radical? Não. Coerente.

Muito já tem sido escrito na literatura educacional sobre a questão dos problemas relacionados à retenção escolar de alunos. Eu, particularmente, gosto do clássico livro de Vitor Paro, Reprovação escolar: renúncia à educação – título bastante apropriado, aliás.
O problema da retenção no Brasil não é novo, e já foi objeto de várias políticas educacionais. A medida que implementou o ciclo básico em São Paulo em 1984 pode ser vista como um marco nesse processo, mas antes dela já ocorriam discussões governamentais sobre o problema da reprovação escolar no primeiro ano, ou primeira série, e a consequente evasão de alunos. O Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1994, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e outros compromissos do Brasil com a educação pública sinalizaram o enfrentamento à questão da evasão, e hoje temos números próximos a 100% quando consideramos a taxa de matrícula na escola. Ainda assim, permanece grande a diferença entre o número de alunos ingressantes e aqueles que concluem a escolaridade básica.

A discussão sobre “aprovação em massa” ou “aprovação automática” também é antiga, e causa ainda muita polêmica. A confusão desses conceitos com a progressão continuada também. De uns anos para cá, para piorar o quadro, essa temática caiu no gosto dos políticos populistas, que tomaram como plataforma de campanha acabar com essa história de aluno “passar de ano sem saber nada”. A população pode não conhecer os detalhes desse debate educacional e suas implicações pedagógicas, mas sente na pele que a escola fica cada vez pior. Na falta de um culpado, nada melhor do que o fantasma da aprovação automática.

É obvio que não estou discutindo que o aluno deva sair da escola do mesmo jeito que entrou. Minha questão é contra a reprovação. Os estudos que embasaram a adoção dos ciclos de aprendizagem – ou seja, períodos que se estendem além do ano escolar – destacam que é importante observar como a aprendizagem ocorre. Não se trata de um processo cumulativo – ou, nas palavras de Paulo Freire, semelhante a uma contabilidade bancária.

Mas a retenção parte exatamente desse pressuposto: deposita-se moedinhas de saber no cérebro do aluno. Ao final do ano, se ele não aprendeu dentro do esperado, se esvazia o cofrinho e começa-se novamente. Não se considera que o processo de aprendizagem é dinâmico e deve ser focado na singularidade do aluno, nas suas necessidades, e não no que ele “deveria” ter aprendido.

Essa é, obviamente, uma direção contrária ao rumo da escola inclusiva, uma vez que se foca no ensino e não na aprendizagem. Vá lá: vamos admitir, então, que uma escola proponha a retenção como uma proposta de futura intervenção diferenciadas para o aluno. Só que não. No mais das vezes, trata-se de pura repetição (repetência, literalmente) do que o aluno viu no ano anterior. Ora, quando a escola opta por esse caminho, qualquer discurso de “construtivismo” cai por terra: ela acredita na repetição, repetição, repetição, repetição e… repetição.

Se a retenção enquanto medida pedagógica é péssima, o quadro consegue piorar quando se misturam as questões disciplinares. Entende-se a aprovação como uma espécie de recompensa a que alunos indisciplinados não teriam direito – um tipo de reforço para um comportamento indesejável. Essa questão ideológica permeia discursos nos conselhos de classe de forma mais ou menos clara. Enquanto não se enxerga o processo de aprendizagem de um aluno de uma forma isenta, e não a partir de um julgamento de valor, será difícil se aprofundar nos meandros complexos dessa questão – ou seja, permanece-se no raso. Assim, torna-se praticamente impossível atingir o nível político do problema, em que a reprovação é um compromisso com a exclusão escolar.

Dentro dessa complexidade, eu gostaria de destacar a questão da escola inclusiva. A retenção é frontalmente incoerente com a filosofia inclusiva. O primeiro ponto a se enfatizar aqui é que o aluno deve aprender junto com seus pares da mesma faixa etária, com os quais compartilha interesses e que lhe servem de modelo. Isso, tanto no caso dos alunos com mais dificuldades bem como, para aqueles que não as possuem, como modelo de convivência com a diversidade, algo fundamental à formação da cidadania.
Ao deixar um aluno para trás em relação a sua turma, com ênfase no que ele supostamente aprendeu ou não, utiliza-se um crivo conteudista em detrimento de outras esferas de desenvolvimento, como a afetiva, social ou mesmo cognitiva em assuntos não propriamente escolares, que mereceriam uma maior consideração na avaliação, no melhor estilo Na vida dez, na escola zero.

Com isso, a escola cria problemas dos quais fatalmente irá se arrepender depois. Por exemplo, mantendo um aluno numa série com uma turma menor que ele, com a qual não se identifica nem compartilha interesses, mas que ao mesmo tempo domina melhor os conteúdos escolares. Como se individualizar nesse contexto? Uma saída é se tornar o bad boy da turma, e afirmar que não aprende por que não quer. Assim, pode ser admirado pelos colegas pela sua rebeldia. O pior é que dificilmente vai acontecer algo diferente com ele: vai repetir as mesmas lições, o que aumentará sua desmotivação com a escola. O ano repetido acaba por não acrescentar muita coisa às suas aprendizagens e contribuir para o recrudescimento de comportamentos negativos na escola. Um tiro que sai pela culatra, e que, mesmo assim, é repetido, repetido, repetido. Como se espera mudar se, na busca de uma solução para um problema, se repetem as mesmas ações já tomadas antes?

Como eu acho que deve ser? Como preconiza a educação inclusiva: todos juntos, atendidos de diferentes formas. Grupos de estudos e atividades desafiantes para que todos possam evoluir na aprendizagem. Tendo claro que o tempo está passando, e que um ou dois anos na vida de um aluno é uma eternidade. Assim, o Ensino Fundamental irá durar exatos nove anos, em que se utilizará todos os recursos para que, ao seu final, o aluno alcance a maior amplitude de aprendizagem possível naquele momento para ele. Contando, obviamente, com o compromisso inabalável dos educadores e da família para esse propósito comum.

Talvez ajudasse se, nos conselhos de classe, se olhasse o aluno como um todo e não como um punhado de notas baixas. Ou ainda que se perguntasse não o que o aluno deixou de aprender, e sim o que a escola deixou de ensinar.

 

Publicado originalmente em 9 de agosto de 2017
(foto: Kay Pat – http://www.freeimages.com)

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