Compartilhar na internet uma cena envolvendo uma criança é proteção ou abuso?
Ainda sobre o evento no MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio de Janeiro que originou uma grande polêmica, em que uma criança, em companhia da mãe, participou de uma performance promovida por um artista nu, tocando seus pés.
Para começar, concordo totalmente com a opinião da Rosely Sayão sobre o assunto. Na discussão acalorada sobre o episódio, o que menos aparece é a preocupação em expor a criança. Esse evento, que poderia ser apenas mais um na vida dessa criança, mais uma performance da qual participou em companhia da mãe, e que talvez fosse até esquecido ou tivesse uma importância menor, vai ficar marcado – pior, vai contribuir para que ela fique marcada. Algo que não causaria maior impressão foi transformado em uma experiência pesada, tensa, ruim. Alguém está se importando com isso? Certamente, não a pessoa que filmou, e muito menos as que compartilharam o vídeo.
Tanto empenho não pode ser atribuído em defender a criança, mas a uma concepção de mundo, de família, de moralidade e de sexualidade. O que mais me espanta é que não se procura conhecer o contexto em que a situação ocorreu. Talvez porque, nesses tempos de excesso de informação, isso seja muito trabalhoso, e apertar o botão “compartilhar” é mais fácil.
O vídeo fala por si? Penso que não. A interpretação de quem vê é que move a polêmica. O que é mais preocupante é a superficialidade dessa interpretação, o moralismo e fanatismo religioso que transparece nos comentários deploráveis que se vê na internet sobre o tema.
Legalmente, as crianças têm direitos inalienáveis, que devem ser respeitados independentemente ou mesmo a despeito da vontade dos pais. Por exemplo: no Brasil, a escolaridade é obrigatória. Se uma família não matricula seu filho na escola, seja por qual motivo for, ela é penalizada legalmente. Isso significa que os pais não podem decidir por aquilo que é direito da criança. Assim, a família não pode expor a criança a violência ou abuso de qualquer natureza sob alegação de que são pais e podem fazer o que quiser. Não, não podem.
Dito isso, voltemos à performance. Alguém pode dizer que permitir que uma criança toque o pé de um homem nu é um ato de negligência da mãe? Não, não pode, sem conhecer o contexto.
Vamos a ele. Trata-se de uma exposição de arte no Museu de Arte Moderna de São Paulo, num evento para convidados (não aberto ao público). A sala tinha o acesso restrito e a presença de nudez estava indicada para os que decidissem entrar. O artista Wagner Schwartz propunha que seu corpo pudesse ser manipulado, dialogando com a obra Bicho, escultura da artista Lygia Clark, que poderia ser movimentada pelo público. Sob o olhar de várias pessoas que participavam da performance, a mãe, que é coreógrafa e, portanto, já deve ter participado de variadas manifestações artísticas que envolvem o corpo como parte da sua formação, acompanhada da filha, mexem nos pés do artista, que está deitado, inerte.
Isso é abuso? Não, não é. A atividade a que a mãe levou a filha não pode ser caracterizada como abusiva apenas porque havia um homem nu, fato sinalizado previamente. É provável que a mãe e a filha não vejam a nudez como algo ruim em si, que era exatamente a situação: um homem nu, sem ação, aguardando ser movimentado pela plateia. É abuso uma família conviver com a nudez de uma forma mais natural? Não, não é.
Consideremos um vídeo da internet em que uma criança, fantasiada de pastor evangélico, “expulsa o demônio” de outra criança. É abuso? Alguém pode entender que expor uma criança a um conteúdo abstrato como o conceito de “demônio” pode ser abuso do tipo intelectual e emocional por fortalecer fantasias de perseguição cuja elaboração é complexa demais para crianças pequenas – mas, para dizermos se é ou não, é preciso avaliar o contexto em que a cena aconteceu. Ou seja: esse tipo de afirmação não pode ser leviano.
No caso do MAM, o que é abuso é a exposição a que a criança foi submetida sem autorização da família com a divulgação do vídeo na internet – e o Ministério Público já está apurando o caso.
O aspecto mais preocupante nesse caso é a forma negligente com que o direito da criança foi tratado. As pessoas que julgaram, condenaram e compartilharam o vídeo, acabaram por criar uma situação de abuso coletivo dessa criança, embora, aparentemente, sua intenção inicial fosse justamente o contrário. Problemas que decorrem de fazer as coisas sem avaliar as consequências.
Fica a dúvida: será que era apenas isso, compartilhar um vídeo movido por um impulso moralista, ou será que é pior, ou seja, as pessoas acham de fato que isso é abuso?
Será que as pessoas sabem o que é abuso sexual? Será que sabem, por exemplo, que a grande maioria dos abusos sexuais acontece no seio da família, na maioria das vezes por pais, padrastos ou avôs? Será que sabem que a melhor forma de prevenir os abusos é dar uma orientação clara para a criança, dizendo a ela que ninguém pode tocar em seus genitais, que fazer isso é errado, e que se acontecer ela deve procurar um adulto para contar? Não, acho que não sabem. Pior, nem devem querer saber. Infelizmente, enquanto continuarem a “compartilhar sem ler” e odiar sem saber, isso continuará.
Publicado originalmente em 11 de outubro de 2017
(imagem: Freeimages)