Uma das questões centrais da minha profissão, de psicóloga escolar (talvez a mais central), é a definição do papel do psicólogo na escola e, de forma mais objetiva, no que este papel se diferencia do psicólogo na clínica. Esse assunto é bastante atual também pela discussão da regulamentação da Lei federal 13.935, de 2019, que determina a prestação de serviços de Psicologia e de Serviço Social nas redes públicas de educação básica.

O que faz um psicólogo? No senso comum, é aquele profissional que atende questões psicológicas, como por exemplo o sofrimento relacionado a eventos da vida (como separações, desemprego e processos de luto, entre outras possibilidades). Nas representações populares, o psicólogo ou psicóloga é geralmente mostrado com um bloco de notas (nunca fiz anotações durante uma sessão diante do paciente, apenas no final, e não conheço nenhum colega que faz – mas o bloquinho é onipresente nas imagens de psicólogos). Também é comum haver um divã em algum lugar, móvel popularizado pela difusão da técnica psicanalítica de Sigmund Freud – esse, também, um ícone da cultura pop, como sabemos pelo uso do bordão “Freud explica”.

Essas representações encontram ressonância na formação tradicional de psicólogos, em que boa parte dos componentes curriculares e estágios são na área clínica. Isso se traduz também na atuação profissional. Em uma pesquisa realizada por solicitação do Conselho Federal de Psicologia em 2001 sobre quem são os psicólogos brasileiros, constatou-se que cerca de 55% dos profissionais atuavam na clínica em consultório e 13% na área da saúde, enquanto que cerca de 9% atuavam na área de psicologia educacional/escolar.

Não é meu objetivo discutir a questão profissional dos psicólogos e psicólogas – cito esses dados aqui para ilustrar a percepção de que o psicólogo faz clínica como praticamente hegemônica. Que tipo de repercussão isso tem na prática do psicólogo escolar?

Posso descrever, de forma bem breve, o objetivo da atuação do psicólogo escolar como um trabalho de enfoque prioritariamente institucional. Olhar para alunos ou professores de forma isolada do contexto escolar, no qual constituem-se nos papéis de alunos e professores, é uma prática pouco útil. Mas pensar assim tem a ver com uma questão de concepção sobre a constituição do psiquismo humano – no caso, de que ele resulta da interação entre humanos, e está diretamente relacionado com as práticas culturais de um determinado grupo.

Assim, atuar como psicóloga escolar não é tentar entender porque um aluno, isoladamente, tem esse ou aquele comportamento ou dificuldade, mas sim compreender esse indivíduo diante do contexto da escola – como essa organização propicia ou bloqueia a expressão de formas de ser e estar no mundo. Esse conhecimento, com a mediação da psicologia escolar, deve fazer parte da maneira como a escola atua, pensa e repensa suas práticas.

Isso pode ser um pouco decepcionante para alguns, que entendem que o psicólogo escolar deveria fazer uma espécie de triagem, identificando os alunos problemáticos e encaminhando-os para tratamentos clínicos – quando não, realizando ele próprio esse tratamento, de forma a ajustar esse indivíduo destoante às expectativas da escola.

Nem preciso dizer o quanto essa prática é equivocada. Primeiro, por ser incompatível com uma visão histórico-cultural do desenvolvimento humano, acreditando que a escola é apenas a soma de individualidades estanques, mais ou menos conformadas a regras supostamente universais. Segundo, porque reduz a prática psicológica a uma questão adaptativa, como se o contexto imediato e a sociedade estivessem sempre certos, cabendo ao indivíduo se adaptar ou ser excluído.

Isso pode parecer exagero, mas era exatamente essa a prática psicológica que vigorou na educação até meados da década de 1990, quando a ideia da educação para todos foi ficando cada vez mais forte, e o encaminhamento de alunos para escolas e classes especiais com base em laudos psicológicos passou a ser fortemente questionado.

Essa é uma história que não deve ser esquecida, e é fundamental para uma atuação do psicólogo que se paute pela inclusão e não pela exclusão, aproveitando o grande potencial que a psicologia escolar tem para contribuir com a construção de contextos educacionais mais acolhedores e democráticos.

 

(imagem: página de imagens resultante da pesquisa no Google da palavra “psicólogos”, resultando em muitos divãs e bloquinhos)

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