O documentário Três estranhos idênticos (2018), que está disponível na Netflix, trata de uma história inacreditável: três irmãos gêmeos idênticos se reencontram por acaso quando têm dezenove anos. O documentário (dirigido pelo diretor britânico Tim Wardle, que levou quatro anos para convencer os irmãos a participar) tem um fio narrativo muito bem construído, que vai nos envolvendo na trama – por isso, escrever sobre a história dos trigêmeos inevitavelmente leva a alguns “spoilers”. Então, se você não assistiu e quer viver a emoção de ir descobrindo como uma história fantástica, de união e alegria, se transforma aos poucos em um conto sombrio de terror, não leia esse artigo antes de assistir o filme (avisei, hein?).
Parece coisa de ficção científica: de repente, você encontra um outro você, perfeitamente semelhante, com os mesmos trejeitos e gostos. Como se não bastasse, há mais um outro – e aí já ficamos pensando em algum tipo de experiência futurista de clonagem, tipo a novela O Clone – o que é meio improvável, uma vez que os trigêmeos nasceram na década de 1960. Talvez fosse menos duro que essa fosse a verdade por trás dos trigêmeos. Infelizmente, é muito mais parecida com a vida real.
Os trigêmeos ficaram famosos – até uma ponta no filme da Madonna, Procura-se Susan desesperadamente, fizeram. Viveram uma rotina de entrevistas na TV, comerciais, eventos, enfim, foram alçados ao mundo das celebridades. Usavam a mesma roupa, e a imagem dos três juntos é mesmo impactante. Nas entrevistas, contavam como eram parecidos, mesmo tendo vivido vidas separadas até o reencontro: fumavam a mesma marca de cigarros e tinham o mesmo gosto por mulheres (perguntas bem anos 1980, aliás).
(Imagem: Netflix.com)
Passada a emoção do reencontro, algumas perguntas vão surgindo, especialmente por parte dos familiares (os irmãos, encantados que estavam uns com os outros, nem queriam saber dos detalhes). Todos sabiam que foram adotados, e todos vieram da mesma agência de adoção, gerida por uma comunidade judaica em Nova York. Percebe-se que as crianças vinham de mulheres com certo poder aquisitivo, também de origem judaica, assim como as famílias de destino. Tudo remete a algo conservador, com o intuito de preservar aspectos sociais e religiosos, garantindo que as crianças recebessem uma criação dentro dos valores da comunidade.
As famílias queriam saber por quê não foram informadas de que as crianças que receberam tinham irmãos. A resposta oficial era de que seria quase impossível que alguém adotasse trigêmeos. Porém, com o decorrer do filme, descobrimos que as crianças na verdade fizeram parte de um estudo científico. Outros irmãos gêmeos da agência foram adotados nas mesmas circunstâncias, e todos foram seguidos na infância por pesquisadores, que os visitavam, entrevistavam, filmavam e aplicavam testes psicológicos. À família, foi explicado que isso era um procedimento normal de acompanhamento das crianças. Ou seja, todos foram enganados, numa experiência profundamente antiética. A investigação foi conduzida por um psicólogo proeminente na época, Peter Neubauer, também de origem judaica. O estudo nunca foi publicado.
As adoções não foram casuais – ou seja, cada um dos trigêmeos foi indicado para uma família com diferentes posições sociais: uma mais abastada, outra de classe média e uma família operária. Também havia nas escolhas um componente relacionado à saúde mental da mãe biológica. Tudo isso vai formando um quadro de controle de variáveis, e vamos oscilando entre sentimentos de espanto e indignação. Como isso foi possível na década de 1960? Ficamos sabendo que o pesquisador responsável doou os arquivos da pesquisa para a Universidade de Yale, devendo ser mantidos sob sigilo até que pudessem ser divulgados, o que aconteceria apenas em 2065 (o que os irmãos conseguiram contestar judicialmente).
Estudos sobre gêmeos são preciosos para a ciência (Luria, eminente psicólogo russo e colaborador de Vigotski, foi um dos que realizou pesquisas no tema), pois se relacionam com umas das principais questões sobre desenvolvimento humano: afinal, o que importa mais, a genética ou o ambiente? Em inglês, isso é traduzido pela expressão nature versus nurture (natureza versus criação).
E a resposta é: não há preponderância de um aspecto sobre o outro. O que somos é resultado de uma química única entre essas duas dimensões da vida, a biológica e a psicológica. No documentário, isso vai ficando claro aos poucos. Inicialmente, causa impacto saber que, mesmo distantes, os irmãos tinham hábitos iguais. Mas vamos refletir sobre que hábitos são esses: fumar Marlboro nos anos 1980, no auge da publicidade da marca? Ou gostar do mesmo estereótipo feminino divulgado pelo marketing da época? Isso vai nos mostrando que se trata de jovens frutos de uma mesma cultura. Em um dos depoimentos do filme, alguém comenta que todos ficaram tão hipnotizados pelas semelhanças que não perceberam as diferenças. Diferenças profundas, que só as trajetórias de individuação únicas podem contar.
O filme é cheio de lições sobre desenvolvimento humano, impacto da cultura e violência institucional, entre outras. Lições que precisamos aprender e sobre as quais devemos refletir sempre, para entender melhor nossa humanidade e para não compactuar com erros éticos indesculpáveis.
imagem: Cena do filme Procura-se Susan desesperadamente, de Madonna, em que os trigêmeos fizeram uma pequena aparição. (https://pics.filmaffinity.com/Three_Identical_Strangers-464778485-large.jpg)