A expressão necessidades educacionais especiais (NEE, em sua forma abreviada) representou um avanço na inclusão escolar de crianças com deficiência. Mas também, como qualquer forma de expressar ideias, sofreu algumas distorções com o tempo e o uso. Assim, é importante esclarecer como ela anda – será que mantém o mesmo vigor inicial? Sofreu distorções demais, ou ainda expressa bem o ideal inclusivo?

É bem provável, como acontece ao usarmos esse tipo de conceito guarda-chuva (em que cabe muita coisa), que não se tenha uma ideia muito clara do que a expressão significa – e pessoas diferentes podem utilizá-la para dizer coisas opostas, por exemplo.
A expressão necessidades educacionais especiais foi utilizada pela primeira vez no Relatório Warnok, publicado em 1978, como resultado de um grupo de trabalho na Inglaterra que discutiu a educação de crianças e jovens ingleses com deficiência. O relatório leva o nome de Helen Warnock, coordenadora da comissão.

O relatório Warnock trouxe muitos avanços na época, em que se pode destacar a necessidade de enfocar a educação das crianças e jovens com deficiência como um problema educacional e não médico. A ideia de necessidades educacionais especiais procurou ampliar o enfoque classificatório das deficiências, devendo ser utilizadas para pensar quais os serviços necessários para uma determinada criança e/ou jovem, e não o seu diagnóstico clínico ou enquadramento em um determinado nível de deficiência intelectual. Isso se dá a partir do reconhecimento de que a mera classificação não exprime as necessidades variáveis e diversas de uma determinada criança e/ou jovem com deficiência.

Segundo o relatório, a educação especial deveria fornecer respostas singulares às complexas necessidades individuais de cada criança e/ou jovem que houvesse sido avaliada pelo profissional de saúde. Com isso, deixava claro o caráter específico da ação educacional, que seria complementar à avaliação clínica, sem substituí-la ou tomá-la como fundamento absoluto da intervenção educativa – essa última deveria ser específica e única para cada aluno.

O relatório Warnock defende ainda que não é possível que o sistema educacional se organize de forma exata para cada tipo de necessidade, sendo desejável que tenha uma flexibilidade para diversos arranjos educacionais que se façam necessários em cada caso. O que, convenhamos, é um grande avanço para a época, em que os testes psicométricos imperavam como principal indicador de medidas educacionais.

Uma em cada cinco crianças e/ou jovens precisará, segundo o mesmo relatório, de alguma atenção especial em algum momento de sua vida escolar. Esses alunos não estarão, nesses momentos, apenas dentro das escolas especiais, mas também em escolas comuns – que devem, portanto, se organizar de forma a atender essa demanda. Essa filosofia ficou conhecida como mainstream, ou corrente principal. A escola regular, o sistema principal, deveria se ramificar em diversos apoios crescentes em âmbito de atuação, de forma complementar ou substitutiva à escola comum. Oferecer apoios ao aluno na escola comum, portanto, começa a fortalecer a ideia de que ele pode obter sucesso nesse ambiente, uma vez que tenha suas necessidades de acesso ao currículo atendidas.

Porém, foi com a Declaração de Salamanca, de 1994, que a expressão necessidades educacionais especiais se consolidou e foi associada de forma mais direta com a inclusão escolar na escola comum, e não mais com o sistema de apoios. A escola comum passa a ser defendida como a escolha principal para alunos com deficiência. Mas não é apenas a esse grupo que a declaração se refere – ela inclui também as crianças em condições de vulnerabilidade, em situação de rua, de minorias linguísticas, étnicas ou culturais, entre outros grupos que demandam da escola uma atenção diferenciada.

A declaração conceitua o termo necessidades educacionais especiais como decorrente de deficiências ou dificuldades de aprendizagem. Afirma que, no processo de escolarização, muitas crianças podem apresentar necessidades educacionais especiais em maior ou menor grau, cabendo à escola organizar-se para garantir que elas possam ser bem-sucedidas nesse processo. Para tanto, preconiza uma pedagogia com foco na criança, o que contribuirá também para combater atitudes discriminatórias e fortalecer a construção da sociedade inclusiva.

Certamente, a Declaração de Salamanca representou um avanço importante para que as escolas comuns assumissem como seu o público de alunos com deficiência. Foi além, definindo que os alunos de uma escola não são um público homogêneo, mas que apresenta diferentes situações que geram ou podem gerar necessidades específicas no seu processo de aprendizagem. Portanto, a escola comum deve assumir que seu público é essencialmente diverso. Assim, a escola comum não poderia mais fazer uma “triagem” de quem pode ou não ser seu aluno, encaminhando alunos para escolas especiais – o lugar de todos os alunos, sem exceções, é a escola comum, que deve organizar-se para atendê-los. Necessidades educacionais especiais, portanto, expressam as diferentes necessidades do público de alunos que devem ser observadas pela escola.

Contudo, cabe apontar alguns efeitos colaterais decorrentes desse enfoque. Muitas vezes, a expressão necessidades educacionais especiais acaba se tornando, na prática, sinônimo de deficiência. Ao invés do alargamento do conceito atuar como um fator de diluição da suposta carga negativa que a ideia de deficiência possa carregar, indicando que todos podem ter dificuldades em maior ou menor extensão, acaba acontecendo o efeito contrário, ou seja, todos são vistos como potencialmente “deficientes” – que é justamente o que se tenta combater.

Com isso, também, ocorre um outro efeito, que é a simplificação excessiva das necessidades dos alunos com deficiência. Uma criança com uma deficiência física e que use cadeira de rodas, por exemplo, estará impedida de frequentar uma escola repleta de escadas. Não se trata de uma necessidade que pode aparecer eventualmente: ela é um fato, e precisa de ações objetivas e imediatas para ser superado. A ideia de necessidades educacionais especiais pode levar a uma certa pulverização dessas necessidades, misturadas num turbilhão de outras necessidades que pululam na escola. No entanto, elas são decisivas para a permanência ou exclusão dos alunos com deficiência na escola.

O cuidado a ser tomado aqui é não confundir o combate à discriminação com uma descaracterização das necessidades das crianças com deficiência. Também é perigoso adotar a expressão necessidades educacionais especiais como uma espécie de eufemismo, ou seja, de referir-se de uma forma supostamente suavizada ao fato da criança ter uma deficiência. Na realidade, esse uso acaba tendo um efeito oposto, ou seja, é discriminatório, na medida em que considera a deficiência como algo a ser atenuado. Falar sobre a deficiência de uma forma clara e honesta é muito mais adequado.

Desta forma, é preciso refletir sobre a forma com que a expressão necessidades educacionais especiais está sendo utilizada. Já ouvi, por exemplo, educadores se referindo a um aluno com deficiência como “ele é NEE”. Observem que, nessa expressão, a necessidade, algo que o aluno “tem”, passa a ser algo que ele “é”, numa espécie de transformação do significado que indica, de forma subliminar, a classificação do sujeito, e não a avaliação da sua necessidade. Pode parecer um preciosismo de linguagem, mas não é: a forma com que usamos as palavras revelam muito sobre como realmente pensamos.

Portanto, é preciso pensar em como se usam essas e outras expressões, não para ser “politicamente correto”, mas para avaliar se as expressões não estão substituindo as ações necessárias a serem tomadas. Ou seja: ter em foco a avaliação das necessidades dos alunos e colocar em prática ações que supram suas necessidade educacionais e removam barreiras para uma aprendizagem bem sucedida.

 

Publicado originalmente em 26 de julho de 2017

(imagem: pixabay)

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