Realizei uma vez um trabalho com uma colega psicóloga tendo como público alvo grupos de professores. Fazíamos um encontro nas escolas, no horário de trabalho pedagógico do grupo. Eram escolas que acompanhávamos, e queríamos aprofundar a discussão sobre os laudos e diagnósticos que rotulam os alunos, além de despontencializar os professores na sua ação pedagógica.
Utilizávamos para isso uma dinâmica que encontramos num material da Unesco sobre educação inclusiva chamada “A história de Pedro”. Consistia em um texto contando a história do aluno, após a leitura do qual se propunha que as pessoas discutissem em subgrupos algumas questões, como “qual a natureza do problema de Pedro?”. Eram três questões, todas desse tipo, mais abertas e visando favorecer a discussão.
Na história de Pedro, se contava as suas dificuldades na escola, e as ações que a escola havia feito para lidar com isso. Informava-se, entre outras coisas, que o pai de Pedro havia falecido, que ele havia nascido num parto de fórceps, que gostava de educação física e de arte.
Quando começávamos a falar sobre a natureza das dificuldades escolares do Pedro, os professores iniciavam geralmente pelos problemas do parto ou ainda pela ausência do pai. O texto, no entanto, tinha muitas informações que não confirmavam essas opções – por exemplo, que o desenvolvimento do Pedro sempre havia sido um pouco mais lento, mesmo antes da morte do pai. Ainda assim, havia atingido os principais pontos do desenvolvimento neurológico, pois se locomovia com independência e se comunicava através da fala. Dessa forma, não poderia ser um motivo neurológico ocasionando no parto. O texto informava ainda que a mãe era bastante presente, sempre atendendo ao chamado da escola.
Pedro passa, durante o texto, por vários especialistas – professor de educação especial, fonoaudiológo, psicólogo, que fazem sugestões sobre ele. No entanto, nada que a escola já não soubesse, de algum modo. E o texto terminava em aberto, com a escola ainda incerta sobre o que fazer.
As informações do texto iam desconstruindo as propostas mais óbvias. Remetendo ao texto, íamos questionando as hipóteses dos professores sobre Pedro. E qual era a intenção? Desafiar os professores a buscarem uma resposta pedagógica para o desafio de ensinar o Pedro, e não uma resposta patologizante, ou seja, de que Pedro tinha algum tipo de distúrbio e seria preciso tratá-lo.
Entretanto, era interessante observar que o grupo pouco a pouco ia ficando desconfortável – ora, se a culpa não é do Pedro, nem do parto e nem da família, de quem é?
O incômodo era sentido pela dúvida: a culpa é do professor? E nessa hora trazíamos isso para o debate, jogando luz no questionamento e trazendo para a reflexão do grupo.
Procurávamos destacar o tipo de jogo perverso em que os professores se colocavam ao buscar encaminhamentos clínicos para explicar o fracasso do aluno: é como se o transtorno do aluno pudesse aliviá-lo da culpa pela não aprendizagem. Ao invés disso, estávamos convidando-os a dar um passo atrás para captar a cena completa: não se trata de um jogo de empurra-empurra de culpa, mas de uma situação complexa que exige novas respostas.
O professor pode então colocar o aluno em outro lugar e se colocar em outro lugar – não o de quem fracassa ou triunfa, mas de quem pesquisa, busca, experimenta, tenta novas propostas, ajusta os desafios, e visa transformar assim as relações de ensino-aprendizagem. Não se trata de buscar o veredito de culpado ou inocente, mas de focar o processo, e de forma qualitativa. O aluno não deve ser visto como alguém incompleto, lesado, mas como alguém que, em face de suas circunstâncias orgânicas, sociais e históricas, se constituiu de forma única. E é esse ser humano único que deve ser visto como o centro da ação educativa da escola e do professor.
Dessa forma, é inútil perguntar de quem é a culpa, mas é muito frutífero considerar o que pode ser transformado ao alcance da sua ação. Por mais micro que ela possa parecer, sua importância é imensa.
Publicado originalmente em 27 de setembro de 2017
(foto: www.freeimages.com)