Há pouco tempo, encontrei na internet uma reportagem que falava sobre as letras de Adoniran Barbosa censuradas em 1973, na época da ditadura brasileira. A reportagem trazia a letra de Tiro ao Álvaro, da forma como foi submetida à censura, devidamente anotada pela censora Eugênia Costa Rodrigues. Em seu parecer, dizia que “a falta de gosto impede a liberação da letra”.
Diante desse fato surreal, várias reflexões me surgem. A primeira é a extrapolação da função da censura na ditadura militar – tema nefasto que tem certos admiradores que, provavelmente por falta de vivência ou de juízo, defendem seu retorno. Mais provavelmente, é aquele sentimento niilista da volta do passado em que tudo era perfeito, no chão corria leite e mel, etc. A idealização do passado mascara as piores lembranças. É como aquela história de que “antigamente a escola era boa”, desacompanhada da devida reflexão de que, antigamente, a escola era para poucos.
Voltando à função da censura sobre os meios de expressão artística, seu objetivo principal é proibir a veiculação de ideias contrárias ao regime ditatorial, vetando letras que possam conter conteúdos ideológicos perturbadores da nova ordem, além de passar a ideia de que as instituições estão muito bem, obrigada. Quando a caneta do censor passa a ter a função de julgamento estético da obra é um momento importante. Quando suas funções se extrapolam da avaliação ideológica para o que supostamente é ou não é de “mau gosto”, podemos perceber que censurar pode ser ainda pior do que se pensava no início. É aquele momento em que alguns animais na fazenda de A Revolução dos bichos, de George Orwell, proclamam que são mais iguais que os outros. Não basta o texto ofender a moral e os bons costumes, atacar a família, a tradição e a propriedade, corromper a juventude: se for de “mau gosto” também não pode ser liberado.
E quem define o mau gosto? Essa parte está clara no manual do censor, ou depende de cada um? A reportagem conta que Adoniran Barbosa não queria problemas com a censura, por isso iria regravar algumas músicas da década de 1950, Tiro ao Álvaro entre elas. Será que a censora conhecia? Ou será que aproveitou para proibir aquela música cheia de erros de português que ofendia seus polidos ouvidos, já que tinha um carimbo na mão e estava na hora e lugar certo? Ou será que, inconscientemente ou não (pois não foi esse o motivo registrado), não seria apropriado dar voz ao povo brasileiro na sua expressão original – coisa que Adoniran fazia com maestria?
Gosto de puxar a reflexão sobre a ditadura para aprofundar a reflexão sobre diversidade.
Hoje, é politicamente correto louvar a diversidade em sala de aula como um valor para a sala de aula. Mas será que, lá no fundo do coração, as pessoas acham isso mesmo?
Uma vez fui fazer uma formação sobre o tema com um grupo de professores e propus uma provocação: será que diversidade é bom mesmo? Cada um trabalhando de um jeito, aquela trabalheira para organizar e para planejar… Será que não é melhor homogeneizar a prática pedagógica? Fazer um esforço para que todos se dirijam ao mais comum, ao normal? O que vocês acham, aqui entre nós?
Os professores estavam meio desconfiados de mim. Davam risinhos, e alguns se arriscaram a dizer que seria menos trabalhoso, mesmo. Então eu disse: “Ótimo! Quem vai dizer então o que é esse normal, esse padrão que devemos seguir? Obviamente, sou eu. Sou a mais forte, estou aqui na frente, sou a professora – eu mando e vocês fazem como eu mandar, porque eu sei o que é melhor”. Xi, e agora?….
Ou seja: quando você consegue relacionar diversidade com democracia, com o direito de todos a terem voz, fica mais claro porque a escola inclusiva é um valor que devemos defender impreterivelmente. Defender o direito de todos é defender o seu direito também. Por isso, é preciso lutar também contra a segregação de alunos em espaços especializados. O lugar de todos os alunos é na escola, devidamente supridos dos apoios necessários a sua aprendizagem.
Espero que as vozes que se insurgem contra a ditadura nunca se calem. E que aqueles que defendem a diversidade consigam compreender a importância do seu papel na consolidação de uma democracia. E que a gente possa ouvir Adoniran Barbosa sempre que quiser.
Publicado originalmente em 16 de agosto de 2017
(foto: Pasqualantonio Pingue – Freeimage)