Semana passada, a revista Veja publicou uma reportagem de capa sobre autismo. Achei a reportagem interessante, considerando o fato de estar numa revista de grande circulação cujo principal objetivo deve ser informar a sociedade em geral sobre o autismo e fortalecer famílias e pessoas com autismo no combate à discriminação.

Gostaria de discutir alguns pontos levantados na reportagem e fazer algumas considerações sobre a importância da inclusão escolar de crianças com autismo.

Primeiro, não uso “autismo” como adjetivo – “aluno autista”, “criança autista”, muito menos “ele é Asperger”. Abordo essa questão da terminologia no meu vídeo Como chamar as pessoas com deficiência. De forma geral, a forma correta a utilizar é “pessoa com”: pessoa com deficiência intelectual, pessoa com deficiência física, pessoa com autismo. Exceções feitas aos termos cujo uso as próprias pessoas com deficiência consideram adequados, como “surdo”, por exemplo. E por que tomar esse cuidado? Para não confundir a pessoa com uma das suas inúmeras características singulares, que é o autismo. Uma pessoa com autismo pode ser também teimosa, paulistana, diabética, atleta, entre várias outras possibilidades. Dessa forma, o autismo não pode ser tomado como sinônimo de sua personalidade, e sim visto como uma característica singular dessa pessoa.

Dito isso, vamos à reportagem. Um ponto muito positivo foram os vários depoimentos que pontuam a matéria, bem como as fotos, feitas com muita sensibilidade. Gostei de ver também, na seção de cartas dos leitores da edição seguinte, manifestações de pessoas com autismo. É muito bom ouvir uma pessoa com autismo falando por ela mesma. Isso, sem dúvida, contribui para desmistificar o transtorno (também não gosto de usar a palavra “doença” – estamos falando de uma condição humana, e não algo a ser combatido, como o câncer, por exemplo).

Um ponto preocupante é a ideia de que o autismo é mais comum do que se imagina. Essa ideia de que uma em cada 68 crianças pode ter autismo me parece um pouco perigosa. É controversa a forma como se chegou a esse número, e mais ainda a informação de que haveriam muitos mais casos subnotificados. Imagino que esse tipo de afirmação tem um objetivo de desmistificar o autismo, no sentido em que afirma que sua incidência é mais comum do que se imagina. Por outro lado, esse tipo de afirmação pode levar muitas famílias e educadores a entender manifestações típicas de uma criança como características autísticas – e é preciso ter cuidado com esse rótulo. Certa vez, conversei com uma colega psicóloga da saúde mental, que disse que era cada vez maior o número de famílias que traziam seus filhos na faixa etária de zero a três anos para uma avaliação psicológica, pois suspeitavam que poderiam ter autismo. Ingredientes como as inúmeras fontes de informação disponíveis na internet (a maioria pouco confiável) e inexperiência dos pais contribuem para esse quadro.

Outro problema da “popularização” do autismo é atribuir a ele uma certa superficialidade e banalidade perigosa. O autismo é uma questão séria, que exige um cuidado e uma atenção especial. Assim, é importante não confundir a divulgação do autismo para combater a discriminação com uma visão rasteira do assunto.

A reportagem traz a escala M-CHAT (Modified Checklist for Autism in Toddlers, ou Escala para rastreamento de autismo em crianças pequenas) para ser usada por familiares na avaliação de crianças com idade entre um ano e quatro meses até dois anos e meio. Para ter acesso a uma informação mais científica sobre a escala, acesse este artigo, que trata da tradução da mesma para o Brasil.

Observem que não estamos falando de um teste do Facebook sobre personalidade, daqueles que as pessoas fazem e esquecem cinco minutos depois. O mau uso desse tipo de informação pode trazer muita angústia desnecessária às famílias, bem como favorecer uma rotulação na escola extremamente nociva à inclusão escolar de uma criança cujas características sejam comuns às tratadas na escala.
Portanto, é preciso ter muito claro que, por mais que seja desejável ter um diagnóstico precoce do autismo, a coisa não é tão simples assim. O diagnóstico do autismo é clínico, baseado em observações que devem ser cuidadosas e feitas com regularidade, preferencialmente por uma equipe multiprofissional – que inclua, além do neuropediatra ou neuropsiquiatra, psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, entre outros profissionais.

Essa questão do diagnóstico é algo delicado quando se enfoca as implicações educacionais do autismo. Eu costumo perguntar para as professoras de alunos com autismo incluídos na sala de aula comum qual foi a primeira coisa que fizeram ao saber que iriam receber um aluno com tal diagnóstico. Elas citam muitas coisas, como conversar com a família, estruturar a escola e etc, aí eu argumento: “não, aposto que a primeira coisa que você fez foi olhar no Google o que é autismo”. Aí a professora ri junto comigo, pois ambas sabemos que é isso mesmo. O Google é algo a que se recorre a todo momento, já faz parte do nosso cérebro (vou escrever sobre isso oportunamente). No entanto, como já adverti, as informações da internet precisam ser vistas com extremo cuidado, pois podem favorecer uma rotulação e uma sensação de impotência na professora, o que é fatal para o trabalho pedagógico.

Muitas dessas informações se baseiam em pressupostos desatualizados. Foram obtidas, por exemplo, ao se observar crianças que nunca viveram uma experiência de inclusão escolar. Tiveram uma trajetória segregada na educação especial ou mesmo em instituições, o que agravou os sintomas de isolamento e dificuldades na comunicação. Hoje, com a realidade da inclusão escolar, esse cenário mudou muito. Muitas crianças com autismo incluídas na escola comum costumam subverter essa lista de sintomas.
Eu adoro quando uma professora me fala: “será que ele tem autismo mesmo?”. Pergunto por que ela acha isso, e ela responde: “ah, ele faz contato visual, gosta de abraçar, entende quando eu falo com ele…”. Ou seja, mitos baseados em informações desatualizadas sobre autismo, que a inserção da criança no contexto da escola comum fez caírem por terra. Portanto, todo o cuidado é pouco na hora de considerar o diagnóstico do autismo no campo educacional.

É fundamental que, na escola, o diagnóstico feito para qualquer criança seja educacional. Se a criança chega trazendo um diagnóstico de autismo ou de qualquer outra informação clínica, esse diagnóstico deve ser tratado como mais uma informação, e não a resposta definitiva para o trabalho com o aluno. Ou seja, nada de “ele é autista, por isso não aprende como os outros”. Essa observação é completamente inútil. A escola não precisa de um laudo de autismo para dizer que esse aluno não aprende como os outros – essa é uma informação de partida, e deveria ser óbvia. O que é útil no campo educacional é saber que ele se concentra por pouco tempo e sai da sala de vez em quando, por exemplo. Então, é preciso pensar em atividades mais curtas e que proporcionem uma circulação maior da turma pelos espaços da escola, entre outras possibilidades. Portanto, autismo ou qualquer outra questão deve ser tratado em referência ao que o aluno precisa para aprender.

Com isso, a mente dos educadores pode ficar mais aberta, e assim conhecer de fato o Tiago, a Juliana, e não o “autista”. Pode se relacionar melhor com esse aluno, e vencer o medo de intervir pedagogicamente com ele. Nesse caminho, muitos professores se surpreendem – é gratificante ouvir uma professora contar como era no início do ano, quando aquele aluno com autismo chegou, e como ele foi evoluindo e aprendendo. Esses alunos, como tantos outros, têm muito a nos ensinar. Como o Fred, cuja frase dá título a esse artigo e foi citada na reportagem da Veja:

Contou a VEJA a advogada Heloisa Uelze Bloisi, mãe de um garoto autista: “Cheguei tarde do trabalho e fui dar um beijo no Fred, que me disse estar com saudade. Eu então perguntei: ‘Você sabe o que é saudade?’. E ele respondeu: ‘Sei, sim, mamãe. É o amor longe’ ”.

Que você possa proporcionar ao Fred na sua sala de aula oportunidades ricas de expressar-se e aprender cada vez mais!

 

Publicado originalmente em 2 de agosto de 2017 

(Foto: Sasint – Pixabay)

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