Um dos assuntos que tem sido discutido com o retorno às aulas presenciais é o uso obrigatório de máscaras por parte dos alunos pequenos.
Com a pandemia, a máscara passou a ser mais um item do material escolar, devendo ser obrigatoriamente utilizada nas dependências da escola. Isso implica na necessidade da escola trabalhar a utilização da máscara com os alunos como mais uma das orientações educacionais presentes no cotidiano escolar, com foco na convivência e cuidados pessoais – da mesma forma que trabalha a escovação dos dentes, por exemplo.
A lei 13.979/2020, que dispõe acerca das medidas de enfrentamento à pandemia do coronavírus, indica que o uso de máscaras é obrigatório no país, porém prevê algumas exceções, como crianças com idade inferior a três anos (especialistas indicam que o uso pode se dar a partir dos dois anos) e “pessoas com transtorno do espectro autista, com deficiência intelectual, com deficiências sensoriais ou com quaisquer outras deficiências que as impeçam de fazer o uso adequado de máscara de proteção facial, conforme declaração médica, que poderá ser obtida por meio digital”.
Eu gostaria de destacar aqui o uso de máscaras por alunos com transtorno do espectro autista (TEA). Essa questão tem alguns aspectos que precisam ser mais bem discutidos no que se refere à escola.
O quanto a criança compreende a necessidade do uso da máscara é talvez o aspecto mais simples de ser respondido – crianças, todas elas, aprendem por modelagem dos adultos (daí a importância de se oferecer bons exemplos). Ao observar os adultos utilizando a máscara, a criança vai se interessar sobre o assunto e tenderá a imitar os adultos. Ela não precisa entender racionalmente por que deve usar a máscara. Convenhamos, aliás, que muitos adultos também têm dificuldade de entender racionalmente essa necessidade – por exemplo, compreender a existência de organismos microscópicos, invisíveis a olho nu, é algo bastante abstrato. Ainda assim, os adultos desenvolvem condutas de autocuidado e respeito aos outros em ambientes sociais, provavelmente devendo-se mais à imitação e observação de recomendações na mídia e às leis e restrições do que a uma compreensão exata da ação dos vírus no nosso organismo – essa, para quem não é especialista, permanece sempre um tanto quanto incrível e fantástica.
A questão da imitação na aprendizagem é importante aqui, e destaca a dificuldade de trabalhar com pessoas com autismo, que mostram ter dificuldades na imitação do outro em alguma medida (o que pode variar muito de pessoa para pessoa).
Há também a questão da sensibilidade tátil que algumas pessoas com autismo demonstram – o contato da máscara com a pele pode ser aversivo para algumas delas. A própria aquisição de um hábito tão diferente, como o uso de máscara, pode ser desafiador para algumas pessoas com autismo, pois a mudança de rotinas geralmente é um problema para elas. Trata-se de uma mudança cultural para toda a nossa sociedade, e para algumas pessoas isso pode ser bem mais complicado.
Mas eu gostaria de refletir um pouco sobre o tratamento que essa questão tem merecido nas escolas, principalmente nas de educação infantil. Outro dia, soube de uma situação em que a escola estava em dúvida se deveria continuar tentando que um aluno de 2 anos utilizasse a máscara, já que ele a retirava e jogava no chão, sem maiores cuidados. A escola entendia que deveria abordar o tema através de brincadeiras, historinhas e outras estratégias educativas e lúdicas (o que é corretíssimo).
Mas onde estava a dúvida, então? No fato do aluno poder ter um diagnóstico de autismo (estava em processo de investigação). E qual seria a consequência disso? Se o aluno recebesse o diagnóstico de TEA estaria adquirindo uma espécie de liberação do uso de máscara, e assim a escola não deveria continuar a educá-lo nesse sentido? Como fica a observação da resposta do aluno às intervenções educacionais realizadas até então? Interrompida por um laudo médico?
Trago essa reflexão para defender que, além da legislação e do laudo, o objetivo da escola é educacional. Portanto, o que vai orientar a continuidade do trabalho para que o aluno aprenda a utilizar a máscara é a observação desse aluno, das suas características únicas, e não o laudo médico considerado de forma isolada.
Não é demais lembrar que autismo não é comorbidade. É preciso não perder isso de vista. A condição de TEA não deve ser utilizada, por exemplo, para justificar que um aluno não possa retornar às aulas presenciais. Essa é uma decisão médica que deve observar questões de saúde, e não tomar o laudo como um argumento definitivo para impedir que um aluno com autismo frequente a escola. Sem esquecer que, enquanto sociedade, apenas estaremos em condições de proporcionar um retorno seguro às aulas para todos os alunos e educadores quando estivermos todos vacinados (mas essa é uma outra história).
Para encerrar, quero comentar sobre duas crianças que acompanho, ambas com diagnóstico de TEA e não verbais. A Cecília tem 5 anos e não aceita usar a máscara. Já o Marcelo tem 9 anos e usa direitinho, nunca se recusou a colocar a máscara. Será que dá pra tratar os dois da mesma forma, já que ambos têm o mesmo laudo? Acredito que não.
(imagem: Freepik)